Tenho cento e setenta anos;
Sou um pouco castelhano,
Sou gringo, sou açoriano,
Meio índio, missioneiro,
Sou negro e sou ariano.
Sou cruza de várias raças,
Andejo de muitas braças;
Por pirraça, brasileiro.
Tenho cento e setenta anos
E mais a herança de avuelos.
Fui lagunense, paulista,
Fui o charrua nativista
Vaqueano de uma pampa
Que cruzei montado em pelo;
Tropeiro de gado chucro,
Cabresteador de sinuelo.
Fui changueiro, charqueador,
Fui coureiro e trançador.
Nascido em rancho de barro
Me criei em palacete;
Sentei praça, fui cadete,
Estancieiro e senador,
Mas não perdi me sinete
De campeiro e peleador.
Fiz pátria a pontaço de lança,
Recolutando esperança
P'ra forja dos ideais,
Pois me deixaram embretado:
Por um lado, o sangue derramado
Por caudilhos orientais;
Por outro, o ganha-pão achacado
Por tributos imperiais.
Trabalhava como um mouro
E nada de pila no caixa.
Era imposto sobre a graxa,
Sobre o charque e sobre o couro;
O sebo pagando taxa
Como se fosse de ouro.
Aqui se invernava de graça
E lá se engordava o tesouro.
Só me chamavam na precisão.
Reiúno do Poder Central.
Largado como um bagual,
Orelhano e redomão,
Coiceado pela traição
Do Partido Portuguez,
Virava bucha de canhão
Nos campos de Treinta y Tres.
Mas há males que vêm pro bem!
Este trato desigual
Funcionou como uma senha
Que vingou tipo azevém;
A revolta ficou prenha
E pariu um manancial
De epopéias no Seival,
No Rio Pardo ou na Azenha.
Clavado em Piratini,
Do Pelotas ao Chuí
E do Alegrete a Viamão,
Fiz uma cruz de respeito
À tradição e ao direito
De um gente soberana.
E corri, no grito e no peito,
Com a tal Corte Lusitana.
Foi dez anos de estrupício;
Mal de apero e de munício,
Passando necessidade,
Conquistei campo e cidade
Levando por frontispício
Só o pavilhão tricolor...
Mas obriguei o Imperador
A me assinar o armistício.
Foi assim minha formação...
Faz cento e sententa anos
Que eu mostrei aos paisanos
Que aqui ninguém mete a mão.
Aquela revolução,
Sem medalhas e sem luxo,
Me deu meu maior galardão:
A honra de ser gaúcho.
J. Lauro Noguez, 20 de Setembro de 1985.
meu Deus!
ResponderExcluirEu lendo tudo isso... caiu o queixo pensando: "bá! que coisa maravilhosa essa que o xiao escreveu." Enfim... mesmo sendo do teu velho, mesmo tu não tendo méritos, obrigado por compartilhar esse poema de tanta força e história. abraços!
De geração à geração, o dom da poesia passa...
ResponderExcluirParabéns a teu pai, e a ti.
Beijoos