sexta-feira, 27 de agosto de 2010

o último crivo

Danço na madrugada, a sós com a quietude
Se penso, penso em nada, de toda razão me privo
Ensaio uma gargalhada, surpresa de quem se ilude
Rio alto na calada, tomo assento e fumo um crivo

O vinho de outrora já não rega mais meus versos
É de amor que me embriago, a goles largos e pesados
E as estrelas que não neguem, que meus olhos, renovados,
Naquele frio mar de mistérios já não mais estão imersos

Sem querer, acordo sorrindo
Um riso profundo e inda assim infantil
E me recuso a acordar pro dia

Não interessa que o céu esteja lindo
Nada supera o beijo sutil
Do último crivo encerrando a poesia

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Pés

Ah, esses pés, que já andaram por tão poucos lugares
Esses pés, que contam tanto pela força do sonhar
Eles, com a força dos quais tanto desejo de fato andar
Por todos os prados que das nuvens descerão a meus andares

A cada calo, calo-me, sinto e vejo o valor
De cada canto, de cada verso, de cada riso, de cada amor
Pois cada passo, dado ao léu, ao breu e sem embaraço
Não sem feridas, cede a certeza de que a certeza às vezes rechaço

E mesmo quando quero estar certo, inda tenho me entregar
Pois mesmo da dúvida quero estar certo; quero saber, não quero sonhar
E meus pés, então, cambaleiam, embriagados, a sustentar
Um peso morto, que vive, sussurrando solito ao luar

terça-feira, 10 de agosto de 2010

O Poeta

O sistema não presta!
As pessoas são tão cegas
Protestar é o que nos resta
E te mato se a isso negas!

Sou revoltado contra tudo
Não entendo como conseguem...
É incrível, todo mundo mudo!
Todo mundo cego, surdo... Não neguem!

Não me ouvem, mas eu tenho razão
Eu sou a razão, eu sou a verdade!
E se me contestam, logo digo não
Pois temo temer e já sinto saudade

Imagine contestar todo o meu saber
Negar quem eu sou, minha própria identidade
Imagine me olhar no espelho, sem mais reconhecer
O orgulhoso sonhador, conhecedor da liberdade

Se penso, logo vejo, não estou de todo certo...
Mas ai de quem me ouça, não, ai, não me ouça!
Melhor eu ler um livro, fumar um crivo, lavar a louça
Do que negar tudo que disse e cheirar a flor de perto

É, vou ler um livro, aquele livro
Daquele cara que me inspirou
Vou renovar o meu discurso,
Quem sabe até fazer um curso,
Ver se aquele fogo quentinho ainda não se apagou

domingo, 1 de agosto de 2010

O Abutre

Sou um abutre infiltrado
Entre quem me alimenta
Cuja sina nunca isenta
De também ser devorado

Não têm ideia de quem sou
Do quão frio eu sou, e vil
Sou quem da verdade os privou
Para tomá-la inteira, num bote sutil

Sou negro urubu, que voa, que espera
Mudo, aos céus, nem me faço perceber
Solito vagando... Ah, quem me dera
Ser sincero novamente antes de morrer

Mas posso também ser apenas imbecil
À procura da verdade, encorporando mais vaidade
Mais uma gralha a encher o saco na cidade
Aos risos dos abutres, que me vêem de seu covil